1976: A PRIMEIRA "CAVADINHA"

Logo oficial da Euro 1976.

    A cavadinha já virou um recurso célebre nas cobranças de pênaltis do futebol mundial. De Zidane a Loco Abreu, vários jogadores já usaram, muitos tiveram final feliz, enquanto outros pararam no goleiro. Quem não se lembra da cavadinha de Elano contra o Flamengo naquele 5 a 4 de 2011, erro que custou caro pois acendeu o clube carioca no jogo? E como não recordar da frieza de Loco Abreu, contra a Gana pela Copa de 2010, que converteu de cavadinha o pênalti decisivo para levar seu Uruguai a uma semifinal de Copa depois de muito tempo? E além desses exemplos, o mais célebre: a famosa cavadinha de Zidane em plena final de Copa do Mundo, contra um dos melhores goleiros da história. Pois é, ao contrário da cavadinha do Zizou, que apesar de convertida, terminou com um final melancólico para o craque francês, a história de hoje é feliz para o corajoso batedor, que resolveu aplicar seu artifício justamente numa final de Euro. É hora de relembrar!

A bravura belga e a força do Leste Europeu

    Para a quinta edição da Eurocopa, o formato consagrado dos últimos anos se manteve, com 32 equipes divididas em oito grupos de quatro, em que apenas o líder avançaria às quartas de final. Algumas chaves prometiam muito, pois Tchecosloáquia, Inglaterra e Portugal caíram juntas por exemplo, assim como Polônia, Holanda e Itália. Nessa perspectiva de apenas o líder avançar, a briga seria acirrada pela classificação.

    O grupo 1 foi o da Tchecoslováquia, ao lado das já citadas Inglaterra e Portugal e do frágil Chipre. Os tchecos começaram sua trajetória nas eliminatórias de maneira errante, com uma derrota por 3 a 0 para a Inglaterra em Wembley, sob quase 84 mil ingleses naquele 30 de outubro de 1974. O English Team foi vencendo seus jogos e acumulou pontos, liderando a chave após quatro rodadas disputadas. No entanto, justamente contra a Tchecoslováquia e novamente num 30 de outubro, desta vez de 1975, os tchecos saíram vitoriosos de virada por 2 a 1, gols de Nehoda e Galis. Na rodada final, uma vitória por 3 a 0 sobre o Chipre levou os vermelhos para as quartas de final, deixando a Inglaterra em segundo e Portugal na terceira posição.

    A chave 2 foi certamente a com maior disparidade técnica entre os envolvidos: enquanto País de Gales, Hungria e Áustria eram times experientes, Luxemburgo era o fiel da balança, prometendo ser saco de pancadas dos adversários. Não à toa sofreu 28 gols em seis jogos, sendo goleada pelo menos uma vez por cada rival: levou 5 a 0 de Gales, 6 a 2 da Áustria e 8 a 1 de Luxemburgo. No fim, quem acabou passando foram os galeses. Por sua vez, a Iugoslávia terminou como grande líder no grupo 3, avançando contra Irlanda do Norte, Suécia e Noruega.

    Nos grupos posteriores, algum equilíbrio. A Espanha ficou invicta na chave 4, com três vitórias e três empates. Em segundo lugar, outra invicta deu adeus: a Romênia. Mesmo sem repetir a campanha de quartas de final de 1972, os romenos fizeram história, empatando cinco jogos e vencendo apenas um. Pelo menos o único triunfo foi icônico, um 6 a 1 poderoso na Dinamarca. Não fossem tantos empates e a classificação se repetiria. No grupo 5, Holanda e Itália caíram frente a frente, mas o final não foi feliz para a Azurra: com uma campanha irregular, os italianos terminaram apenas em terceiro, atrás da Polônia e da líder Holanda, duas equipes semifinalistas da Copa de 1974.

Massacre da Alemanha contra Malta nas eliminatórias.

    Por fim, União Soviética, Bélgica e Alemanha Ocidental avançaram em suas chaves, o que, à exceção da Bélgica, não era uma surpresa. A própria classificação belga já era esperada, visto que a França, boa força do grupo, vivia uma entressafra, vencendo apenas um jogo da fase de qualificação, muito pouco para quem tentava se classificar. Assim, a Bélgica se credenciava como um bom time para chegar ao torneio final, repetindo o feito da edição anterior, quando inclusive sediou as decisões. Azar deles que o destino não era esse.

Massacrante Carrossel Holandês

    A Holanda não era mais a seleção que encantou o mundo na Copa de 1974, mas ainda tinha muita força e qualidade. Com nomes da categoria de Neeskens, Krol, Rensenbrick e, claro, Johann Cruyff, a Laranja Mecânica era favorita, apesar da ausência de Rinus Michels, comandante daquele esquadrão mítico de 1974. Dessa vez, coube a George Knobel tentar alcançar o sucesso internacional. Nas quartas de finais, jogando o melhor futebol daquela fase, a Holanda foi arrasadora, passando pela Bélgica com um placar agregado de 7 a 1. Na ida, um 5 a 0 impiedoso, com hat-trick de Rensenbrick, e um 2 a 1 de virada contra a Bélgica na volta. Cruyff marcou o gol da vitória que levou a Holanda pela primeira vez a uma Euro.

    Nos outros confrontos, ninguém passou com a tranquilidade de duas vitórias. O duelo do Leste Europeu entre União Soviética e Tchecoslováquia terminou com avanço dos tchecos para a próxima fase: na ida, uma vitória por 2 a 0 deu a vantagem à equipe, enquanto um empate por 2 a 2 eliminou os soviéticos da competição, concretizando a decadência da URSS, que ainda tinha bons nomes, como Blokhin.

    Outro triunfo do Leste Europeu foi conquistado pela Iugoslávia contra o País de Gales. Na ida, os iugoslavos começaram a todo vapor, com Vukotić abrindo o placar a 1 minuto. Popivoda ainda fez o segundo, dando boa vantagem à equipe contra os britânicos. Em Cardiff, na partida da volta, um empate por 1 a 1 classificou a Iugoslávia para sua terceira participação na competição.

    O duelo entre a Espanha, campeã europeia em 64, e a Alemanha, atual campeã do mundo, era o grande espetáculo daquela última fase classificatória para o torneio. Eram duas equipes com campanhas bem semelhantes até ali, ostentando o status de invictas na fase de qualificação. Talvez por isso o jogo de ida em Madrid ficou num 1 a 1, gols de Santillana e Beer. Mas na partida de Munique, não houve chance para a Espanha: Hoeness e Toppmöller marcaram os gols da vitória por 2 a 0, levando a Alemanha para o torneio final, confiantes no bi consecutivo. Com Holanda, Iugoslávia e Tchecoslováquia na Euro, a expectativa era clara de uma reedição da final da Copa de 74.

A Alemanha comemora mais uma vaga no torneio final.

Disputa à vera

    Marcado para ocorrer entre 16 e 20 de junho, o torneio foi sediado na velha Iugoslávia, país do Leste Europeu. Contrariando a tendência das edições anteriores, apenas duas sedes foram escolhidas: Zagreb, atual capital da Croácia mas parte do país naquela década de 70, com seu estádio Maksimir, e Belgrado, casa do famoso Estrela Vermelha, onde também ocorreria a grande final. A estreante Holanda foi sorteada para enfrentar a Tchecoslováquia, enquanto os anfitriões jogariam contra a atual campeã Alemanha.

    Na noite de 16 de junho, Tchecoslováquia e Holanda entraram em campo no gramado do Maksimir para um grande jogo, mas com um público modesto de quase 18 mil pessoas. Sob uma forte chuva, o favoritismo ainda era dos holandeses, mas os tchecos mostraram muita força, abrindo o placar aos 19 minutos, em gol marcado pelo líbero Ondruš. A tempestade que caía atrapalhava os holandeses e seu  futebol baseado na troca de passes, ficando sujeitos ao jogo físico e defensivo armado pelos tchecos para aquela partida. Sorte dos laranjas que Pollák dificultou tudo ao ser expulso no segundo tempo, além de Ondruš deixar tudo igual graças a um corte errado que resultou em gol contra. 1 a 1 e jogo na prorrogação.

    Antes mesmo do tempo adicional, Neeskens foi expulso pelo lado holandês, deixando tudo em aberto no dez contra dez. Mais bem acomodado e organizado em campo, os tchecos marcaram duas vezes na prorrogação: aos 9 da segunda etapa, Nehoda colocou a Tchecoslováquia na frente, e quatro minutos depois foi a vez de Veselý marcar o seu. O time do Leste Europeu estava na final, mostrando superioridade contra uma Holanda em frangalhos, técnica, tática e disciplinarmente, como demonstra a expulsão de Van Hamegem um minuto depois do segundo gol tchecoslovaco.

Na abertura da Euro, a batalha entre tchecos e holandeses terminou com final feliz para a equipe do Leste Europeu.

    A outra semifinal ocorreu no dia seguinte, em um Red Star lotado com mais de 50 mil torcedores. A Iugoslávia começou bem, abrindo 2 a 0 com uma atuação impecável no primeiro tempo. Popivoda fez o primeiro aos 19 minutos, e Džajić ampliou logo com meia hora. Parecia que teríamos uma final do Leste Europeu, mas a Alemanha mostrou porque era atual campeã: Flohe, que entrara no intervalo, diminuiu para a Nationalelf em gol estranhíssimo, chutando em cima do companheiro Hölzenbein. Outro mudança foi vital para o futuro da Alemanha naquela Euro: a entrada de Müller, que empatou tudo aos 82, logo três minutos após entrar no jogo. 2 a 2 e mais uma prorrogação naquela Eurocopa, conseguida graças a um gol de Dieter Müller, xará de Gerd Müller, o Bomber alemão da edição passada. Mostrando que era mesmo fazedor de gol, Dieter marcou mais dois na prorrogação, também nos últimos minutos, levando sua Alemanha para mais uma final, espantando qualquer chance de zebra. Era hora de defender o título contra aqueles tchecos fanáticos por fazer história.

Mais disputa, mais prorrogações

    Como Tchecoslováquia e Alemanha enfrentaram as agruras do tempo extra na fase anterior, ambas vinham no mesmo nível de cansaço, com 120 minutos de estresse e dificuldades nas costas. Talvez até os tchecos tenham estado mais cansados, pois jogaram debaixo de chuva, o que exige mais dos jogadores, além de terem se defendido em grande parte do tempo contra a Holanda. Mas isso é assunto para daqui a pouco.

    Na decisão do terceiro lugar, Iugoslávia e Holanda fizeram jogo bem aberto no vazio estádio Maksimir. Pouco mais de 6700 presentes viram os laranjas abrirem 2 a 1 na primeira etapa, gols de Geels e Willy van de Kerkhof, com Katalinski descontando para os anfitriões. No segundo tempo, Džajić apareceu novamente, empatando tudo e levando mais uma partida para a prorrogação. Nela, o sofrimento e o cansaço teve fim com um gol de Geels aos 2 minutos do segundo tempo, dando pelo menos o bronze aos holandeses. Mesmo jogando em casa, a Iugoslávia não conseguiu alcançar o pódio.

    Mas voltemos à grande final do dia 20 de junho. 30 mil torcedores estavam presentes em Belgrado para prestigiar uma grande partida de futebol, entre uma equipe prestigiada por eliminar a espetacular Holanda e outra já famosa por sua qualidade e eficiência. Esperava-se uma vitória alemã com todos os méritos, mas os tchecos não eram de se desprezar. Por sua vez, Helmut Schön não hesitou em colocar Dieter Müller entre os titulares, esperando que o camisa 9 novamente colocasse em prática seu faro de gols.

    A Tchecoslováquia começou aquela decisão a todo vapor, jogando de peito aberto, como se estivesse em casa. O glorioso goleiro Sepp Maier teve que trabalhar logo no início da partida, mas aos 8 minutos, não deu para segurar: em passe de Nehoda, Švehlík apareceu livre na esquerda da área para empurrar para o gol. O 2 a 0 veio aos 25, um golaço marcado por Dobiaš, aproveitando sobra de um corte na entrada da área. A Alemanha ainda reagiu três minutos depois, em golaço de voleio de Müller, mas o 2 a 1 ainda era favorável aos tchecos.

    No segundo tempo, a Alemanha atacou como nunca, pressionando a Tchecoslováquia de todas as formas para conseguir o empate. O goleiro Viktor fazia grandes defesas, mas logo no último minuto, não teve jeito: em cobrança fechadinha de escanteio, Hölzenbein subiu mais alto que o arqueiro adversário e testou para o fundo do gol, deixando tudo igual. O título que já era quase dos tchecos voltava a ficar neutro novamente, e nem a prorrogação conseguiria reverter isso.

O prêmio pela ousadia

    A Euro de 1976 foi mesmo um show à parte: todas as quatro partidas de sua fase final necessitaram da prorrogação para definir o vencedor, o que mostra a garra e a vontade das equipes envolvidas. Naquela noite do dia 20 de junho, nem mesmo o tempo adicional de 30 minutos seria capaz de tirar a igualdade do placar, já que ambas as equipes vinham cansadíssimas pelo esforço daquele jogo e do anterior. O último recurso era ela, a perigosa, misteriosa e tensa disputa por pênaltis.

    Dado o desgaste dos times, esperava-se uma disputa ruim, com jogadores perdendo, pernas pesando, goleiros incapacitados de defender. No entanto, não foi o que aconteceu: os três primeiros pênaltis de cada equipe foram convertidos, exemplo da categoria de ambos os times. Uli Hoeness, cobrador da quarta batida da alemã, correu para a bola como quem queria tirar completamente o goleiro da jogada, mas bateu forte demais, isolando, chutando um míssil para longe das redes de Viktor. Como Jurkemik havia convertido o quarto pênalti tcheco logo antes de Hoeness, o placar de 4 a 3 dava à Tchecoslováquia a chance de definir.

    Aí chegou a vez de Panenka. Compenetrado, o meia do Bohemians Praga resolveu colocar em prática seu estilo particular de bater pênaltis, o qual vinha treinando há vários anos. Até aquela época, os jogadores batiam as penalidades de forma segura, com chutes potentes, rasteiros, nos cantos, mas nada parecido do jeito como Panenka fez. O camisa 7 tomou distância e, vendo que Maier cairia para a esquerda, deu um toquinho simples, de cavadinha, para o meio do gol. Impegável para o goleiro alemão, que só viu a bola entrar e os tchecos ficarem em festa.

Panenka e sua cavadinha...

    Aquela cobrança foi icônica e assustadora, pois era a primeira vez que alguém fazia algo parecido, ainda mais em uma final de Eurocopa, e logo no pênalti decisivo. Panenka ganhou notoriedade, sua batida foi exibida em todo o mundo, assustando aqueles que acompanhavam futebol. Em entrevista para a UEFA, anos depois, o autor da façanha conta que treinou bastante para se aperfeiçoar na cobrança de pênaltis: "Após o fim dos treinos, ele e o seu colega goleiro do clube ficavam a praticar pênaltis, apostando 'um chocolate ou uma cerveja'. Assim que dominou o chute "à Panenka", ele recorda-se de 'ter começado a aumentar de peso, pois ganhava as apostas.'"

Panenka e seu gol.

    Dos mais de 45 anos que separam a cobrança de Panenka aos dias de hoje, vários jogadores tentaram replicar o feito, alguns com mais e outros com menos sucesso. Esse lance aconteceu inclusive em final de Copa do Mundo, como já dissemos, obra de um gênio chamado Zidane, que não temeu Buffon e os futuros tetracampeões italianos.

Com a camisa da Alemanha, os tchecos levantam a taça.

    O título tcheco foi um prêmio a uma seleção que nunca desistiu, após os vices de 34 e 62 na Copa do Mundo. Entretanto, aquela geração não conseguiu sucesso na Copa seguinte, ficando inclusive de fora, mas atingiu o topo com o ouro nas Olimpíadas de 80. E por falar em 80, era hora de mais uma Alemanha aterrorizar a Europa, mas isso é assunto para o próximo post.

O torneio e sua história em vídeo do YouTube.

E na próxima semana: 1980 - Uma nova Alemanha e uma nova Eurocopa.

Comentários

Postagens mais visitadas