1988: O AUGE HOLANDÊS

O logo da Eurocopa de 1988.

    Quando você pensa na Seleção Holandesa de Futebol, o que vem à sua mente? A maioria das pessoas pode responder: a Holanda de 74, o futebol total, Johann Cruyff e o Carrossel Holandês. Outros, cruéis com o histórico laranja em Copas do Mundo, certamente citarão a Holanda como aquele típico time que encanta, chega forte, mas morre na praia. Foi assim em 1974, 1978 e, mais recentemente, em 2010, três vices incômodos nas únicas três finais dos neerlandeses em Copas. Um retrospecto infeliz em questão de conquistas.

    Mas em 1988, a Holanda foi forte, guerreira e, acima de tudo, vitoriosa. Com uma campanha típica daquele chavão de "soube crescer dentro do torneio", a Laranja Mecânica conseguiu levar a primeira e, até hoje, única taça de sua história. Com um voraz Van Basten no comando de ataque e o mítico Rinus Michels na casamata, a Seleção Holandesa foi campeã com muito merecimento. É hora de relembrar!

Ocidente Europeu em peso

    O regulamento das eliminatórias para aquela edição de Euro era o mesmo do ano anterior: 32 equipes distribuídas em sete grupos, com três formados por quatro times e quatro chaves com cinco equipes. Quem vencesse estaria no torneio final. A melhor campanha da fase de qualificação acabou sendo da Holanda, que passou invicta por Polônia, Grécia, Hungria e Chipre.

    Foi num jogo contra os cipriotas inclusive que aconteceu um fato curioso: quando a partida estava 1 a 0 para a Holanda, um torcedor acertou uma laranja no goleiro Charitou. A partida até continuou, terminando em 8 a 0 para os neerlandeses, mas acabou sendo anulada. Pouco mais de um mês depois, a Holanda goleou novamente o Chipre, dessa vez por 4 a 0, resultado sim que valeu.

Naipe de jogador de Berni, mascote daquela Euro.

    Nos outros grupos, poucas surpresas. A Espanha superou a Romênia e conseguiu a vaga, e a Itália, ao contrário das eliminatórias para a edição anterior, fez ótima campanha, liderando contra Suécia e Portugal. Além dessas duas equipes classificadas, a Inglaterra também garantiu vaga no torneio final, passando de forma invicta pela decadente Iugoslávia. A Dinamarca foi outra que se classificou, deixando a antiga Tchecoslováquia de fora.


    Quem decepcionou dessa vez foi a França. Atual campeã do torneio após uma temporada incrível de Platini, Les Bleus foram muito mal, terminando em terceiro no grupo 3, atrás da classificada União Soviética e da Alemanha Oriental. A jornada dos franceses foi péssima, com apenas uma vitória em oito jogos, e contra a fraca Islândia. Depois de um ano mágico em 1984, as coisas para a França caminhavam rumo ao fundo do poço.

    A grande zebra das eliminatórias foi a Irlanda. Com uma campanha coesa e consistente, embora pouco empolgante, o Eire superou Bulgária, Bélgica, Escócia e Luxemburgo para sair com a vaga. Contra Alemanha, Holanda, Espanha, Itália, Inglaterra, Dinamarca e União Soviética, a Irlanda parecia ser o saco de pancadas da competição, independente do adversário. No entanto, para a alegria dos irlandeses, não foi o que aconteceu.

De novo na Alemanha, como em 1974

    A Eurocopa de 1988 foi pomposa em questão de sedes, com oito cidades recebendo jogos pela competição, representando quase todo o território do país, então dividido pelo Muro de Berlim. Por essa caótica divisão entre as Alemanha Ocidental e Oriental, que ruiria no ano seguinte, Berlim foi uma ausência sentida, ficando de fora do torneio, diferentemente do que ocorreu na Copa do Mundo de 1974. Assim, as cidades de Munique, Gelsenkirchen, Hamburgo, Frankfurt, Stuttgart, Colônia, Hannover e Düsseldorf foram as escolhidas para sediar a história.

    O sorteio dos grupos não foi nada camarada. No grupo 1, além da anfitriã Alemanha, atual vice-campeã do Mundo, havia os sempre perigosos italianos, a Espanha de Butragueño e a Dinamarca sensação de 86. Assim, a previsão era de duelos difíceis para os donos da casa, com muita pressão de imprensa e torcida. Na abertura, já um imperdível Alemanha e Itália, relembrando a grande final da Copa do Mundo de 1982. Já no grupo 2, a vida parecia duríssima para a Irlanda, com Holanda, Inglaterra e União Soviética pela frente. Prenúncio de três derrotas para os irlandeses, e turismo da seleção verde e branca na Alemanha.

Na abertura, Vialli é cercado por dois alemães.

    Na primeira chave, ninguém deu sopa para o azar. Apesar do empate por 1 a 1 na estreia, Alemanha e Itália venceram seus dois jogos contra espanhóis e dinamarqueses e avançaram com tranquilidade, donos de campanhas invictas. A Nationalelf acabou na liderança, enquanto a Squadra Azzurra ficou em segundo. Já a Espanha só venceu na estreia, com um 3 a 2 sobre a Dinamarca, e deu um adeus precoce em mais um torneio europeu.

    Enquanto isso, no grupo 2, a situação se desenhou de forma mais equilibrada (e surpreendente). Logo na primeira partida, a Irlanda venceu a Inglaterra por 1 a 0, gol de Houghton, para espanto dos mais de 50 mil presentes no Neckarstadion, em Stuttgart. Tal sentimento foi ainda mais inflamado com a vitória da União Soviética sobre a Holanda, também por 1 a 0, em Colônia. As favoritas a passar já começaram tropeçando.

    Na estreia, Rinus Michels apostou em Bosman como titular do ataque ao lado de Gullit, justificando que o esforçado jogador fazia um jogo mais coletivo que seu reserva, Van Basten. No entanto, diante da má atuação do camisa 9 contra a União Soviética, Van Basten ganhou um voto de confiança do treinador para o duelo contra a Inglaterra, em 15 de junho. E na tarde de Düsseldorf, o centroavante do Milan correspondeu a todas as expectativas. Foram dele os três gols na vitória por 3 a 1, numa atuação impecável que alçava o centroavante a titular absoluto.

Whelan, o autor de um golaço contra a União Soviética.

    Mas ainda havia a Irlanda. Mantendo-se como zebra, os antecessores de Robbie Keane arrancaram um empate contra a União Soviética, dividindo a liderança do grupo com o time do Leste Europeu. A Holanda precisaria de uma vitória para avançar de fase, e isso significava desmantelar as fortes duas linhas de quatro armadas por Jack Charlton, técnico da Irlanda. O confronto foi sofrido, mas a Holanda venceu, gol de Kieft aos 82 minutos, e pôde comemorar a classificação em segundo lugar, atrás apenas dos soviéticos, que venceram a Inglaterra por 3 a 1. Foi a pior campanha do English Team na história da competição.

    Assim, as semifinais previam um forte duelo entre União Soviética e Itália e outro duríssimo entre Alemanha e Holanda. De novo a Alemanha no caminho holandês, assim como em 1974. Era a hora de buscar a doce e saborosa vingança, relembrando tempos ainda mais remotos que aqueles do Carrossel Holandês de Cruyff e companhia.

Do futebol para a guerra basta apenas um passo

    A noite de 21 de junho de 1988 previa um duelo disputadíssimo em Hamburgo. Contra a Alemanha de Matthäus, Völler e Klinsmann, a Holanda precisaria jogar muito para sair com a classificação, além de calar toda a torcida presente, formada majoritariamente por alemães. E aquela acabou não sendo uma simples partida para os holandeses: era a hora da desforra, a chance de se vingar pelo doloroso vice da Copa de 74 e, remetendo a uma época ainda mais distante, também da Segunda Guerra Mundial. Naquele tempo, os nazistas de Hitler e companhia haviam invadido e assassinado milhares de holandeses, num período negro da história dos Países Baixos. Era hora de se vingar.

    Talvez pensando demais em dar o troco, os jogadores da Holanda se mostraram irritados, com o ânimo bem acima do ideal, endurecendo nas divididas e reclamando dos alemães a cada instante. Van Breukelen, grande goleiro da Laranja, era um dos mais exaltados, distribuindo xingamentos e ofensas para todos os lados. Para aqueles onze homens vestidos de laranja e branco, a partida era uma guerra, onde quase tudo valia.

Alguém pararia Van Basten?

    Com os nervos à flor da pele, a Holanda acabou sofrendo o primeiro gol do jogo, marcado por Matthäus de pênalti, aos dez minutos. Parecia que a Alemanha se sobreporia mais uma vez sobre os holandeses, o antigo carrasco contra a pobre e velha vítima. A Nationalelf só não contava com um absurdo erro do árbitro romeno Ioan Igna, que marcou pênalti totalmente inexistente em Van Basten. Na cobrança, Ronald Koeman marcou o gol de empate, quando já eram 29 minutos do segundo tempo.

    Mais calmos e focados em vencer, os holandeses pressionaram, sempre buscando Van Basten na área. E, parodiando um antigo bordão, "quem tem Van Basten tem tudo": recebendo bola enfiada no meio da área, o grande centroavante viu a bola tentar escapar, mas se esticou todo, mandando de carrinho no cantinho de Immel. Gol de centroavante, daqueles camisa 9 bem clássicos que não desistem. Era o gol da vitória, da classificação e da festa, uma festança imensa de jogadores, alguns torcedores e comissão técnica. Teve até provocação, tal era a façanha daquele resultado. Naquele momento, Van Basten já tinha quatro gols no torneio, mas o melhor ficaria para o final.

Alegria por eliminar a Alemanha.

    Na outra semifinal, União Soviética e Itália fizeram um jogo marcado pela superioridade dos soviéticos, que marcaram em um espaço de quatro minutos com Lytovchenko e Protasov. Mesmo com grandes nomes em campo, casos de Ancelotti, Altobelli, Zenga, Baresi, Vialli e um jovem Paolo Maldini, a Itália não conseguiu marcar, sucumbindo perante o aplicado time da URSS. Assim, a seleção soviética iria para sua quarta final de campeonato com um retrospecto não muito amigável: nas três tentativas anteriores, a União Soviética vencera um e ficara com dois vices. Era a chance de quebrar a escrita e buscar o primeiro título, enquanto a Holanda tentaria superar a sua escrita particular. Num duelo de tradicionais vices, alguém teria que ser campeão, e esse alguém seria o time de laranja.

Um grande gol e um grande título

    Falar da final é falar do golaço de Van Basten. Um dos grandes gols da história da seleção holandesa, sem dúvida um dos mais improváveis, feito por um jogador que sempre foi um lutador, dentro e fora de campo. Nas quatro linhas, ele atormentava a vida de zagueiros e goleiros adversários, enquanto vivia às turras com lesões no joelho que o tiravam dos gramados. Por tudo isso, aquele gol espetacular foi icônico, mas a final não é só isso. É tudo isso e muito mais.

    25 de junho de 1988. Um público espetacular de mais de 62 mil pessoas lotava o Olympiastadion em Munique. Era dia de alguém soltar o grito de campeão, e os holandeses eram favoritos para esse feito. Armada num 4-4-2 consistente, com Rijkaard e Ronald Koeman segurando o rojão defensivo, além de Vanenburg e Erwin Koeman assessorando a dupla Guliit e Van Basten, a Holanda tinha mesmo o melhor time para aquela final. Seria preciso esquecer a derrota na estreia para a própria URSS, e buscar o título inédito. Já os soviéticos também vinham no 4-4-2, mas com jogadores bem mais modestos tecnicamente que os holandeses. A força do conjunto era a chave dos comandados de Valeriy Lobanovskyi.

O grande time e o lindo uniforme da Holanda.

    Mas a missão era ingrata. Com a bola rolando, a URSS até exigiu defesas de Van Breukelen no início, mas a Holanda foi superior e abriu o placar ainda no primeiro tempo, aos 32: em vacilada da defesa soviética, Van Basten escorou um cruzamento para Guliit, que fuzilou de cabeça sem chances para Dasayev. 1 a 0 importantíssimo antes do intervalo. Nos 45 minutos finais, veio o grandioso lance citado há dois parágrafos, o gol memorável de Van Basten.

    Você já deve ter lido e visto por aí várias interpretações e visões daquele gol, então reproduzi-lo novamente talvez seja chover no molhado. Mas como foi um lindo tento, cabe deixar algumas linhas para representá-lo: aos nove minutos do segundo tempo, Mühren arrancou pela ponta esquerda e cruzou, mas com demasiada força para Van Basten no segundo pau. No improviso e na categoria, com a bola chegando alta e quase fora da área, o centroavante levantou a perna direita e mandou a bucha, acertando com violência o ângulo direito do encoberto Dasayev. Um gol de final, coroando o artilheiro da competição e o dono do Ballon D'or de 1988.

A foto tirada no momento certo. (Globoesporte.com)

    A URSS estava sem sorte, e também sem competência. Nas duas chances que teve, acertou a trave de Van Breukelen em chute de Belanov, e ainda perderia um pênalti com o mesmo Belanov. A forte cobrança do camisa 11 foi defendida com força, raiva e competência de um Van Breukelen em chamas. Holanda 2 a 0, campeã pela primeira vez de um torneio, exorcizando o trauma de sempre perder em finais. Já a União Soviética acumulou mais um vice, o terceiro em quatro decisões, e viu terminar ali sua história como URSS, já que o país se dissolveria três anos depois.

Campeões pela primeira e, até agora, única vez.

    Foi a vez da Holanda, a primeira oportunidade de ser campeão. Gullit, Koeman, Rijkaard e Van Basten conseguiam o que nem o Carrossel de Cruyff conseguiu, um caneco para chamar de seu. Méritos também para Rinus Michels, técnico também em 74, que conseguia finalmente ser campeão, com 14 anos de atraso. Pena para a Holanda que, já sem Michels, o time voltou a fracassar em 90, e nunca mais voltou a vencer algo grande. Os holandeses ainda esperam, 33 anos depois.

Ótimo vídeo sobre a Euro, do canal Memórias del Fútbol.

E na próxima semana: 1992 - Um improvável conquistador nórdico.

Comentários

Postagens mais visitadas